sábado, 25 de dezembro de 2010

Pieces II

Não sabes, claro que não sabes! Ninguém sabe, e tu especialmente ainda menos.
Convido-te a entrar, como habitualmente faço com todos, e a beber um chá. E lá vais tu, dentro do teu “sem destino” e ignorância entrando. Sentas-te no sofá e vais engolindo aquelas porções de água aromatizada absorta em nem sei bem o quê. E o tilintar das xícaras de porcelana vai servindo de banda sonora daquele cenário improvisado que as boas maneiras ditam. Tento vasculhar a cada reacção tua mais qualquer coisa do teu interior enquanto escondo cada vez mais o meu. Apercebo-me que me quero apresentar, enquanto sorvo chá para disfarçar, e não consigo. Limito-me a fingir que estou confortável com a situação. E não estou. Tal como tu. Dizes que o chá é divinal. E que a companhia também. E também o julgo, mas não reajo. Gostaria, mas não consigo. A razão proíbe-me e não deveria.
E por ali ficamos, bebendo chá, fingindo alegria e conforto no meio do caos mais que óbvio até este arrefecer e desaparecer o pretexto para ali estarmos. E cada um ser obrigado a seguir o seu destino. Imposto, estupidamente, em vez de por ali ficarmos, frente a frente, vulneráveis, esperando um passo por mais mínimo que fosse para oficializar a verdadeira razão que nos levou a sentar ali. Mas não o fizemos. E esperámos ansiosamente por mais um pretexto.

sábado, 18 de dezembro de 2010

Rot

Viu-a ao longe, pelo reflexo do espelho, encostada a um canto de decadência e podridão a puxar a manga gasta e deslavada. Apertava o braço com um elástico até lhe parar a circulação, quase sem força, e com uma seringa injectava um cocktail qualquer. Cada gota que lhe entrava no organismo sugava-lhe os vestígios de corpo e alma que ainda sobreviviam milagrosamente até acabar por cair.

Chegou ao pé dela, sem cor submersa em convulsões, e procurou por qualquer sinal de vida que ainda pudesse sobreviver. Uma poça ia alastrando e marcando o chão. Quente. Vermelha.
Abortara. E nem se apercebera naquele antro em que a sua vida se tornara que estava grávida. Apenas um corpo morto nos braços dele, e outro desfeito espalhado aos poucos pelo chão…

Ela acordou, acompanhada por máquinas em cima de uma maca velha abandonada em mais um qualquer quarto de hospital, sem força, gasta, presa a um fio frágil de vida. E ele olhava para ela, com olhos vazios enquanto lhe segurava na mão quase fossilizada.

Balbuciou a esforço – Que se passou?

– Nada – respondeu

E beijou-lhe a testa aninhando-se a seu lado.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Swing

Anda de baloiço, indo e voltando, só com ar acompanhando o seu movimento. Um acompanhamento feito de nada, mas que existe! E ali fica, balançando de um lado para o outro, subindo e descendo na sua felicidade. Numa ténue e descartável felicidade…

sábado, 11 de dezembro de 2010

“Suborinaste a tua vida ao dever, e o dever não existe: é um mundo de orgulho e de escrúpulos.”

Raul Brandão

(a)pesar

Ela estava ali, sentada numa velha cadeira de buínho com os braços mortos numa mesa de pedra à espera. Olhava para o relógio poeirento de madeira pendurado na parede gasta e caiada, olhava para a D. Alzira debaixo da chaminé entretida em panelas de barro mascarradas a borbulharem como todas as manhãs, olhava para a janela que, embora embaciada, deixava ver um verde gritante do pequeno pátio, e continuava à espera. Esqueceu-se do frio que lhe fazia pingar o nariz absorta na ansiedade. A velha porta de tábuas grossas gemeu ao abrir. Um homem de vestes gastas e sujas entra e limita-se a entregar-lhe uma carta e sair, sem balbuciar sequer. Rasga o envelope impaciente e abre-a. Estranhamente o papel não vinha escrito a esferográfica com aquela letra fluída habitual. Desta vez trazia uma folha mais grossa, com a imagem do exército ao canto, escrita à máquina e com cunho no final. Começou a ler:

É com o maior pesar que a informamos…

E parou. Parou de ler. Parou de respirar. Tentou continuar e a cada palavra que lia o coração era-lhe arrancado e desfeito aos bocados. Estava estática, cheia de lágrimas. Olhou em frente e a D. Alzira parara. Tal como o relógio. E o verde que a janela não deixava esconder desaparecera.

domingo, 5 de dezembro de 2010

Autumn

Dentro do seu chapinhar de galochas, em poças, folhas amarelas e vestígios de lama, sentia o cheiro a Outono que aquecia a pequena brisa gélida. Em frente o típico senhor de avental encardido de negrume, unhas amarelas, cabelo seco e grisalho pintava as mãos a cada página de jornal que ia enrolando e preenchendo com castanhas. E sorria. Via a cidade a viver e a rejubilar a cada segundo acompanhada pelo crepitar das brasas e frutos secos no fogareiro fumegante. Assistia ao desfile de velhinhas em grupos em direcção a cafés, casais apaixonados maravilhados com cada detalhe que surgia, crianças pulando e cantando na sua alegre inocência a caminho da escola, animais entusiasmados com o movimento constante até ao vaguear do pedinte contente com esmola. Também o ar se ia pintando com guarda-chuvas de diferentes tamanhos e cores num ritmo marcado por solas gastas e tacões. E o vendedor de castanhas continuava a sorrir. E ele olhava.

Uma pinga ,fresca, caindo-lhe na nuca fê-lo voltar do transe e abrir os olhos. Sentiu as tábuas frias do banco e as árvores remexendo com o vento largando os restos de gotas de orvalho. Tinha um pombo parado à sua frente mirando-o com compaixão. Atirou-lhe um resto de pão seco que parara de comer submerso no infinito, na fantasia. E ali ficou, estagnado no frio de Outono, vendo o pequeno pombo agradecendo-lhe calorosamente a cada bicada entusiasmada, sentindo-se como o sorridente vendedor de castanhas. Completo.

sábado, 4 de dezembro de 2010

Sem fuso


Pela primeira vez em semanas, sentou-se à mesa enquanto ela lhe servia o prato e o recheava com molho. Tinha uma pele límpida. Já se esquecera do bonita que conseguia ser.

Costumava ficar sentado sozinho a picar uns restos de comida do prato, apenas acompanhado por um rasgo de luz que a cortina deixava entrar e lhe pintava parte do rosto sem expressão. Toda a semana comia, trabalhava, e vivia sozinho manipulado pela agenda e pressionado pela obrigação. Apenas a encontrava à noite, já embrulhado nos lençóis, onde lhe fazia as mesmas perguntas rotineiras de sempre, lhe acariciava as costas e o acordava quando o cansaço calava o despertador.

- Não consigo mais! – desabafou - Preciso do divórcio…

E o ar dissipou-se. Tal como o tempo. O quebrar do prato na mesa acordou-os novamente. Ela pálida, a tremer, com os olhos petrificados. Ele desanuviado e leve.
Tentou protegê-la, embora impedido pelos seus olhos afogados em mágoa e lágrimas, que tentava esconder com os finos dedos das mãos.

Correu até à tasca. Deu por si a correr pela primeira vez em anos, tal como sentiu ar a entrar-lhe pelos pulmões. Coisa estranha. Refugiou-se em bebida, que lhe acariciava a boca e lhe preenchia a alma, quase gasta. Olhou para os demais, felizes, ignorantes, partilhando as suas trivialidades com o resto dos clientes. E brindavam o momento com vinho e toucinho. Também o quis, mas não o tinha. Acabara de virar costas ao único ser que ainda se preocupava em afaga-las. Apercebeu-se que sentia algo mais que ternura por ela…e entregou-se aos tragos daquele qualquer elixir.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Stuck

Acorda, e sente o corpo caído no suspenso. Uma gélida resistência de metal agarrando-lhe com afinco pés e pulsos fá-lo recordar a realidade. A realidade que o fechou num espaço hermético e artificial onde o único sinal de vida que resiste é a sua própria respiração. Ofegante, repentina e cada vez mais intensa alimentada a pânico. Apenas lhe resta tentar lutar. E luta. Luta entusiasticamente, tentando-se desprender com a vida destas algemas cruéis que lhe aprisionam o corpo. E a alma. Esforça-se cada vez mais. As veias dilatam até rebentarem a pele, e escorrem-lhe pingas de suor realçando-as, gradualmente, ainda mais. O cabelo acompanha-o, irónica e suavemente como se de uma dança se tratasse. O fulgor com que explodem bolsas de ar quente e húmido dos seus pulmões vão registando o desespero, compassando o tempo que tende em não passar. Luta com motivo e continua a lutar quando este se esgota. O ímpeto instintivo e animalesco de sobrevivência fornece-lhe forças outrora desconhecidas. Embora em vão. Tudo se mantém estático. Somente marcas de sobrevivência surgem rasgadas na carne. E ele desiste. Sem alternativa nem força.

Apenas entregue e abandonado àquela miserável condição...

Paranóia

Quero uma paranóia. Aquele estado criticado por muitos e adorado por tão poucos.
Quero! Viver a flutuar no limiar da loucura e aproveitar intensamente o que este estado me possa trazer. Baloiçar no desconhecido e devolver desdém às regras e imposições. Quero ser livre. Quero ser estranho. Quero abraçar o ridículo e esfregá-lo na cara do suposto correcto. Porque este não me dá nada e a insanidade dá-me tudo.