segunda-feira, 28 de março de 2011

Germaine IV

Chama-se Gérard Bordeaux. Nasceu em Bourgogne a 1892 mas mudara-se um ano depois para a Baviera com os pais devido à Grande Depressão que assolava a Europa. Com o eclodir da primeira Grande Guerra fora destacado, juntamente com o pai, para os campos de batalha polacos. No entanto um acidente de comboio 2 anos depois, nos Cárpatos, teria morto os dois Bordeaux, deixando Audele, sua mãe, sozinha na Alemanha. Audele voltara mais tarde para França para a terra onde nascera mas que nunca chegara a conhecer, a pequena aldeia onde ainda hoje mora.

Estavam sentados na cozinha, os três, debicando café. O camponês, confuso, tentava perceber em vão o que por ali se passava, Germaine estupefacta, lacrimejava enquanto ouvia Gérard a explicar a sua fatídica história, que por sua vez tentava combater o cansaço com as doses de cafeína que acompanhavam a sua conversa. Começou por contar que se aproveitara do acidente e consequente incêndio para o julgarem morto e poder fugir ao exército, deixando os restos carbonizados do pai para trás. Escondera-se por um mês nas montanhas e começou depois a caminhar em direcção a Itália onde se refugiou numa fábrica de armamento pago a refeições. O fungar de Germaine interrompeu-o e a sua cara de terror, de quem ainda tentava assimilar a dolorosa morte do ex marido e a precariedade a que o filho fora sujeito, obrigaram-no a terminar por ali a descrição. – Entretanto fugi de Itália e decidi voltar a França. Supus que te encontraria por aqui. Nada é mais reconfortante que a nossa casa, não achas? - E consolou-a com um sorriso. O camponês, até então mudo, decide intervir. Estende-lhe uma fatia de queijo e diz – Sou o Willelm Dubois. É de vaca. Fui eu que o produzi. É o melhor de toda a região. Gérard acena-lhe levemente com a cabeça e prova-o. – É óptimo Monsieur Dubois . Sou o Gérard. Fico feliz por saber que a minha mãe não tem estado sozinha. E Germaine sorri-lhe, ainda com os olhos arranhados e a cara encharcada, agradecendo. Agradecendo o consentimento do filho. Agradecendo-lhe a sua presença, ali, finalmente ao pé de si, vivo.

Saíram de casa para caminhar pela aldeia, e deixar o sol celebrar aquele dia, até mergulharem pelo campo que a abraçava. Pararam na cruz de ramos de nogueira que Germaine construira, aconchegada entre duas magnólias, e que decorava regularmente. – Como conseguiste o corpo do pai? – perguntou Gérard. – Não consegui – respondeu-lhe com um leve sorriso Germaine, enquanto o camponês lhe beijava a testa. E Ali se sentaram os três, num pic-nic, com a seara ao lado e a cabana de Willelm logo depois. – Espero que ninguém nos veja aqui, a comer no meio do chão ao lado do memorial, neste ritual, hereges! – exclama sarcasticamente Germaine, rindo como há muito não ria. Tal como o camponês. Acompanhados pelas calorosas gargalhadas de Gérard que depositava no túmulo uma folha gasta e já amarelada onde se lia "Il n'avait pas de gîte, pas de pain, pas de feu, pas d'amour ; mais il était joyeux parce qu'il était libre" frase que o definira e lera no primeiro livro que o pai lhe oferecera, Les Misérables.

sábado, 26 de março de 2011

Germaine III

Acabara o galo de cantar e alguém batera à porta. Muito engelhado o camponês abre-a e o rosto de Germaine surge cobrindo os raios matinais. Agarra-lhe na mão e puxa-o – Vem comigo. E condu-lo, entre a seara e os caminhos de terra, até à aldeia. Entram na pâtisserie e sentam-se. Os olhares intrigados cobrem a pequena mesa encostada à janelita decorada com bules de porcelana e bolinhos quentes onde o estranho casal se sentava. Ela com a mão pousada na dele sorrindo e conversando enquanto ele lhe acenava conforme ia corando. Que vergonha! Na hora seguinte a indignação popular, com a afronta a que aqueles fregueses tinham sido alvo pouco antes, já tinha inundado cafés, praça, cabeleireiro e lançou o burburinho constante na sagrada missa de domingo. A pobre coitada da viúva demonstrava-se afinal uma representação fiel do anti-cristo. E o camponês, esse, coitado…nunca fora nada. Transformara-se apenas num alvo fácil para servir de marionette àquela velhota estranha. E num instante detalhes e descrições foram surgindo sobre aquela “bruxa” que nunca ninguém soube de onde vinha. O que ajudava a dar um fulgor e fascínio únicos ao desenvolvimento daquele rol. Tanta criatividade e energia escondidas numa só aldeia. E por aquele vilarejo passaram o dia, passeando de um lado para o outro, saboreando a companhia um do outro ignorando a admiração e contestação dos restantes. Terminaram em casa de Germaine. Era pequena, mas iluminada e acolhedora. Sentaram-se em frente à lareira a beber chocolate quente, apreciando-se mutuamente à luz das chamas. Brindavam o desconhecimento. O desconhecimento que aqueles demais nunca ultrapassariam. Nem poderiam. Eram todos programados à nascença para encobrirem de uma miserável felicidade o infortúnio dos outros. Pobres ignorantes. Sem fugas pelo campo ao som do mugir de vacas, ou trocas de olhares escondidos, ou o prazer carnal tomado com naturalidade e ausência de sentimento de culpa, celebrados no final a chocolate quente à luz da lareira. E ali, pelo chão, adormeceram enroscados no tapete em frente às brasas.

Na manhã seguinte a campainha tocou. E o camponês abriu a porta, respondendo à indignação geral, com o sorriso mais genuíno alguma vez visto. No entanto não se apresentara nenhuma cara que este reconhecesse. Era um jovem, vestindo uniforme, cheio de malas, com cara de quem não via comida nem banho há meses. Perguntou surpreendido num sotaque italiano – Bom dia, é esta a casa de Audele Bordeaux? Ela está?
Ao cimo das escadas Germaine petrificara. E durante os segundos seguintes não reagiu. Apenas lágrimas escorrendo-lhe avidamente pelo rosto enquanto admirava cada centímetro do desconhecido à porta. Começa a correr pelas escadas abaixo, como que em desespero, e abraça-o com toda a energia que tinha. Ele retribui o abraço com a mesma vivacidade, enquanto os olhos quase lhe saltam das órbitas e sorri. Tenta falar mas não consegue. Tem um nó na garganta que apenas lhe deixa escapar, acompanhado a lágrimas, um balbucio – Mãe!

segunda-feira, 14 de março de 2011

Germaine II

E hoje levantou-se rápida e energicamente. Era dia de feira. Saira à rua com uma nova vontade, mas escondendo-a habilmente com uma cara entristecida de quem lamentava o marido. E lamentava-o. Percorria a rua à pressa vigiada pelos olhares de pena até chegar à praça central da aldeia, onde os sinos tocavam e brindavam as bancas coloridas que se iam encavalitando por ali, onde as crianças brincavam, as senhoras cumprimentavam e os senhores negociavam. A folia da aldeia era guardada cuidadosamente durante a semana para ser espalhada no sábado em que o mercado ali se instalava. E entre o esgravatar das bancas e tendas, onde Germaine fazia questão de gastar algum tempo de forma a dar mais credibilidade ao seu papel de viúva desgraçada, o seu olhar era subtilmente desviado para o pequeno balcão. De meia dúzia de farripas de madeira que se enchia de cereais e pequenos produtos agrícolas empilhados por ali cima. E o olhar era ansiosamente correspondido. Ali praticavam a telepatia pública enquanto os demais se divertiam nas conversas habituais. Elas sobre as triviais aventuras que viveram, eles sobre as legislações económicas.
Até que o entardecer despedisse os habitantes das ruas e deixasse a praça vaga, reservada apenas a Germaine, ao camponês, e à brisa que enchia o ar e agitava a seara lá ao longe. Onde se sentaram, vendo o sol morrer e a palidez da lua nascer para fugirem. Escondendo-se entre arbustos e pedras que os levavam até à recôndita cabana acompanhados pelo tilintar de chocalhos e o mugir das vacas. Onde voltavam a perder a vergonha que obrigatoriamente simulavam, iluminados pelo pequeno e gasto candeeiro a petróleo e o cheiro a funcho. Abraçados pela natureza que eles ali excitadamente celebravam. Longa e entusiasticamente. Até o galo cantar e o camponês se levantar a caminho da seara que o esperava. Ela deixava-se ficar sempre na cama por mais uns momentos, apreciando a revolta de lençóis criada com a agitada noite e o cheiro do corpo do companheiro impregnado nos velhos panos. Levantava-se depois, jovem, e saía pelo campo para procurar frutos para comer por ali e colher as flores mais vibrantes e virtuosas que encontrava. Que mais tarde deixava junto do defunto marido no seu pequeno ritual; Onde o sorria com saudade...