quinta-feira, 7 de abril de 2011

Germaine VII

Os Jogos Olímpicos chegaram e Gérard fora destacado para Berlim de forma a dar cobertura ao evento para o jornal. O frenesim era constante e a expectativa maior ainda. O regime estava de olhos postos no acontecimento e o mundo também. Gérard ficara com a tarefa de seguir a comitiva alemã e as suas estrelas que a euforia patriótica transformava no centro das atenções. Conhecera pessoalmente alguns, inclusive Karl, atleta apreciado e louvado pela Nação e que dava cara à propaganda do regime. Era um alemão, alto, loiro e de olhos claros, de fisionomia semelhante a um deus grego, candidato a várias medalhas. Aproximaram-se, natural e instintivamente, e a empatia, embora discreta, era efectivamente mútua. Karl cortejava-o subtil e cuidadosamente. Oferecia-lhe carinho e condescendência, com algumas quase imperceptíveis investidas, inexistentes aos olhos comuns, num jogo de misticismo e sedução. E Gérard acompanhava-o. A coerência da conversa perdia-se dando lugar à dilatação de veias e explosões de adrenalina. Os olhos, desligados do diálogo de aparência, confirmavam a implícita troca de subentendidos. Num ímpeto, impensado, o atleta provou-lhe os lábios, delirante, com fervor e paixão. E Gérard correspondia-o. Nunca o fizera antes, pelo menos com um homem, e surpreendentemente não o sentiu como insignificante ou frívolo. Deixara-se levar naquela dança de descoberta. E sentiu-se incontestavelmente completo.

Karl não adormecera. O delírio não lhe permitira. Deixara-se ficar estático a admirar as formas do companheiro descansando a seu lado, aninhado entre a colcha e almofadas. Esticou um dedo e percorreu a linha das suas costas, tocando-lhe levemente, sentindo-lhe a pele. Gérard acordou. Sentiu os lençóis enrolados nos pés e olhou para o lado. O alemão, nu, sorria-lhe amavelmente. Beijou-o e deixou o seu corpo encaixar-se no dele. Admirava-o. Com as mãos. Com os olhos. Com a língua. Com o corpo. E a alma. Numa entrega mútua louvando aquela injuriosa fusão num qualquer quarto esquecido em Berlim.

terça-feira, 5 de abril de 2011

Germaine VI

Baviera. Ali a Natureza tinha o seu próprio cunho e espaço para se impor e seduzir. O verde magnetizante encontrava-se de braços dados com a história, de castelos, monumentos e pequenos vestígios celtas, romanos e gauleses guardados entre vales e rochedos, com a metrópole ao centro que não deixava esconder o exuberante progresso da civilização. Tudo enquadrado numa especial composição que conferia uma peculiar singularidade àquela província. Viveram ali inicialmente sem acesso a invejáveis condições. Germaine encontrou alguma estabilidade em empregos entre fábricas e cafés para alugar uma casinha na periferia e Gérard, com o seu ordenado de fotógrafo, jornalista, redactor e escravo de um jornal, remodelava-a gradualmente e abastecia a dispensa. Não tinham acesso a luxos, mordomias, ou pequenas extravagâncias de tempos a tempos. Nem as queriam. Contentavam-se com passeios ao domingo entre idas ao parque ou o mercado nos subúrbios onde lembravam o camponês. Felizes.

Acordou de madrugada obrigada pela ansiedade. Sentou-se no lavatório de porcelana e fechou os olhos. Imaginava Willelm enquanto deixava deslizar a mão pela cintura. As coxas abriam-se criando caminho aos dedos que começavam, gradualmente, a ganhar algum movimento. De início suavemente, tocando ao de leve apenas nos lábios, aumentando depois o ritmo e a pressão. Encostou a cabeça à parede, onde lhe escorriam gotas de suor e onde a respiração ficava cada vez mais forte e audível. Gemia no final, sem vergonha nem preconceitos, saindo depois da casa de banho. Leve. Seguiu para a cozinha. Acendeu velas, preparou café, fez pão, panquecas, chá e tomou o pequeno-almoço. Tinham passado oito anos desde que chegara à Alemanha. Vestiu-se meticulosamente e saiu de casa. Ao chegar à estação duas horas depois, sentou-se, na plataforma dois, ansiosamente à espera. O ensurdecedor ruído e chiar do comboio a chegar à paragem fez a viúva rejubilar. As portas abriram-se e a multidão em segundos invadiu a estação. Destacava-se, ao fundo o camponês, um homem sem malas, de aparência rude, vestindo apenas trapos gastos. Germaine começa a correr e abraça-o. Sente as mãos ganharem vida própria e a palmilharem-lhe o corpo analisando-o como se de um diagnóstico se tratasse. Percorreu-lhe a cara com os lábios, trémulos, e os seus olhares, penetrantes e vibrantes, pararam na cara um do outro. Tal como o tempo.

Jantavam. Enquanto servia vinho, Gérard levantou-se.Ergueu o seu copo e disse alegremente - Encontrei uma casa. Fica perto da redacção. Não muito longe daqui. É perfeita para mim e para as minhas economias. Chegou a hora de vos dar espaço e conquistar o meu.
E brindaram. Germaine aprontou-se a saudá-lo. Willelm limitou-se a sorrir. Não falara desde o início de refeição. Nem mesmo quando a sua companheira e Gérard partilhavam alegremente as suas quotidianas novidades. Permanecia mudo. Não tinha coragem de corromper aquela melodia. Ouvia, secreta e graciosamente, o tilintar do metal dos talheres na porcelana dos pratos, e o som do vinho a cair e lamber o interior dos copos. Aquela orquestra de conforto e calor estimulavam a sua mais genuína euforia. E o seu silêncio traduzia-se na sua sincera forma de gratidão.

domingo, 3 de abril de 2011

Germaine V

Estavam na cabana sentados a um canto à luz do candeeiro a petróleo. Willelm mostrava a sua pequena colecção de fotografias. Eram velhas e debotadas mas traduziam-se no seu pequeno tesouro. Tinha ali registada a sua vida. Mostrava uma onde, ainda pequeno, estava com os seus pais e avós no casamento de uma tia, outra de uma carroça na praça onde ajudava frequentemente o seu pai a vender produtos, uma terceira onde se via uma mala de cabedal, que levava habitualmente para a escola, encostada a uma árvore enquanto organizava um rebanho e, por fim, uma quarta fotografia onde se via uma paisagem que entusiasticamente mostrou como tendo sido a sua primeira grande colheita. Willelm descrevia-as terna e detalhadamente. Germaine e Gérard olhavam para aqueles pequenos fragmentos de memórias imaginando com compaixão as histórias que o camponês orgulhosamente exibia. – Sabes Gérard, tenho em casa a tua caixinha. – Disse-lhe repentinamente Germaine. – Não queres vê-la?
Era um pequeno baú onde tinha, ao longo do tempo, juntado pedaços da vida do filho. Guardara um caderninho rabiscado, um carrinho de arames, uma borboleta seca dentro de um frasco, dentes, folhas e vestígios de uma criança normal que se fascinava com os mais ínfimos detalhes que a infância lhe oferecera.
Agarraram na toalha e restos do banquete que tinham deixado estiraçados na mesa e saíram, do modesto casebre do camponês, caminhando até à aldeia. Ao chegarem pouco restava. Apenas as suas caras incrédulas escondendo o desespero enquanto olhavam para as labaredas que se alimentavam da casa e iam crescendo rápida e assustadoramente. Destruíram cada manifestação de existência que a viúva cuidadosamente criara. Os barrotes caiam e o estrondo submerso em fagulhas temperava cruelmente aquele inferno. Uma mancha de tinta na parede, antes inexistente, ardia e deixava marcada a negro uma frase: O poder do feitiço é irónico, não, bruxa? E o fogo sentenciava agora o que outrora celebrara,cúmplice tanto na lareira como no pequeno candeeiro a petróleo, engolindo furiosamente a cómoda casa de Germaine. Eles apavorados, deixaram-se cair pelo chão e esperaram que o pesadelo terminasse. Acordaram, na manhã seguinte na rua com as caras aconchegadas pelas pedras do chão, tapados pela toalha, com ruínas de carvão e cinzas à frente. Estavam cercados por metade da população da aldeia que se aprontou a analisar e especular o sucedido e simular um falso ar pesaroso. Germaine limitou-se a tentar recuperar em vão alguns objectos sobreviventes ao incêndio e a sair dali com burburinho e olhares intrigados atrás.

– Vou voltar para a Baviera. Não suporto mais a podridão desta gente – confessou enojada e indignada aos dois. – Não espero que me acompanhem, ou mesmo me apoiem, mas adoraria tê-los comigo. Não me sinto capaz de continuar a viver aqui. – Terminou em soluços e choro. – Como planeias ir? – pergunta Gérard à porta da cabana pronto a segui-la. – Não sei. Vamos andando e descobrindo. Parando por aqui e ali até chegar à cidade e apanhar um comboio. Rapidamente o camponês se apronta a intervir – Fora de questão! Não me posso mudar já convosco, ainda há muito a prender-me aqui. Vou vender os campos e a cabana para juntar dinheiro e poder comprar uma boa casa na Alemanha para nós. Vamos ficar bem. Mas por enquanto não posso. Até lá ainda têm uma longa viagem até à cidade comigo. – e acalma-os com um beijo. Sai depois para ir preparar a carroça e enchê-la com alguns mantimentos. – Bem, estão prontos? – pergunta-lhes tempos depois. Eles arrastando mantas e agasalhos sobem para o tosco transporte num estéril entusiasmo. E seguiram. Seguiram, lentamente, deixando a aldeia apagar-se ao longe. Calados. Ouvindo apenas o toc-toc dos cascos, a respiração do burro, o chiar das rodas e o remexer das plantas com a brisa que anunciava o anoitecer. Cansados.