sábado, 4 de dezembro de 2010

Sem fuso


Pela primeira vez em semanas, sentou-se à mesa enquanto ela lhe servia o prato e o recheava com molho. Tinha uma pele límpida. Já se esquecera do bonita que conseguia ser.

Costumava ficar sentado sozinho a picar uns restos de comida do prato, apenas acompanhado por um rasgo de luz que a cortina deixava entrar e lhe pintava parte do rosto sem expressão. Toda a semana comia, trabalhava, e vivia sozinho manipulado pela agenda e pressionado pela obrigação. Apenas a encontrava à noite, já embrulhado nos lençóis, onde lhe fazia as mesmas perguntas rotineiras de sempre, lhe acariciava as costas e o acordava quando o cansaço calava o despertador.

- Não consigo mais! – desabafou - Preciso do divórcio…

E o ar dissipou-se. Tal como o tempo. O quebrar do prato na mesa acordou-os novamente. Ela pálida, a tremer, com os olhos petrificados. Ele desanuviado e leve.
Tentou protegê-la, embora impedido pelos seus olhos afogados em mágoa e lágrimas, que tentava esconder com os finos dedos das mãos.

Correu até à tasca. Deu por si a correr pela primeira vez em anos, tal como sentiu ar a entrar-lhe pelos pulmões. Coisa estranha. Refugiou-se em bebida, que lhe acariciava a boca e lhe preenchia a alma, quase gasta. Olhou para os demais, felizes, ignorantes, partilhando as suas trivialidades com o resto dos clientes. E brindavam o momento com vinho e toucinho. Também o quis, mas não o tinha. Acabara de virar costas ao único ser que ainda se preocupava em afaga-las. Apercebeu-se que sentia algo mais que ternura por ela…e entregou-se aos tragos daquele qualquer elixir.

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